esse é um vaso de planta frutífera! pode levar os frutos que você colher para casa :)
Um dos assuntos que mais tenho estudado nos últimos anos é de onde vem a cultura que consumimos. Se você me acompanha no Instagram ou no TikTok provavelmente já me viu falando sobre isso. Parece algo bobo, à primeira vista, mas é um assunto central para qualquer pessoa que trabalha com criatividade. Deixa eu te mostrar.
One step forward, two steps back
Para entendermelhor o assunto, precisamos pensar um pouco sobre o processo criativo. Uma das melhores analogias que vi até hoje sobre criatividade é a descrita pela Julia Cameron em seu livro “O caminho do artista”. Ela compara o processo criativo com um poço de água, desses que a gente vê nos desenhos. Todas as vezes que assistimos a um filme, escutamos uma música ou visitamos o teatro adicionamos alguns litros de água no poço. Isso acontece de forma inconsciente, não há um comando interno do tipo “alexa, armazene essa informação”. O poço vai enchendo com a cultura que consumimos.
Então, chega o momento de tirar água do poço: escrever um poema, uma música, um livro ou pintar um quadro. Você vai até o poço, gira a roldana e faz o balde subir sacolejando enquanto esbarra pelas paredes de tijolos. (Gosto de pensar que meu balde é feito de metal e está todo amassado pelo uso). A água que você retirou é o resultado da mistura cultural que você consumiu.
E o ponto central dessa discussão é: quão misturada é essa água?
Antropofagia Cultural
A década de 1920 foi de uma efervescência cultural ímpar no nosso país. Você já deve ter ouvido falar da Semana de 22 e sobre o conceito que dá nome à essa newsletter. De acordo com a etmologia: anthropo (homem), phagia (comer). Ou seja, comer carne humana. Es modernistas da década de 20, liderades por Oswald de Andrade, expandiram o termo ao propor a antropofagia cultural: devorar diversas culturas para regurgitar algo nosso, algo brasileiro.
O movimento foi importante pois chamou atenção ao processo criativo e mostrou que nosso país tem uma vasta cultura e que deve ser usada quando criamos arte. Mais tarde, esse movimento iria impactar em outra revolução cultural: a tropicália.
Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. (Manifesto Antropófago, Oswald de Andrade, 1928)
“Tá, Rafa, mas o que isso tem a ver comigo? Estamos em 2023, um século depois desse rolê.”
Calma, vou chegar lá.
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Imperialismo cultural
Quero te propor um exercício. Pegue os últimos dez livros que você leu. Quantos deles vieram dos Estados Unidos ou Inglaterra? Quantos vieram da ásia? Quantos vieram da áfrica? E dos nossos vizinhos da américa latina? Eu queira muito estar errado, mas imagino que você não obteve uma distribuição homogênea.
Entendeu onde quero chegar?
É impossível negar a influência que a terra do Tio Sam tem sobre o Brasil. Nossas listas de livros mais vendidos estão repletas de autories estadunidenses. Isso porque estou falando apenas de livros. Se olharmos para séries e filmes a situação fica ainda mais crítica.
A nossa independência ainda não foi proclamada.
(Manifesto Antropófago, Oswald de Andrade, 1928)
“Tá, mas e daí? Pelo menos o povo tá lendo, certo?”
Não há problema em consumir literatura anglófona. Não tem nada de errado em assistir filmes de Hollywood ou sitcoms estadunidenses. Não vou ser hipócrita e bancar o purista aqui. Meu cantor favorito é inglês; minha cantora favorita, estadunidense. O objetivo dessa reflexão não é boicotar toda a cultura que vem de um determinado país, mas sim estimular um consumo mais diversificado.
Papo de escritore
Para quem escreve, compõe ou desenha, pensar no que está consumindo é essencial. Lembra da analogia do poço? Se você apenas o abastece com cultura estadunidense, na hora de coletar a água, o balde subirá gritando McDonalds e a água terá gosto de Coca-Cola. E isso refletirá na sua criação. Pegue o meu primeiro livro publicado, Filhas de Ninguém. Ali você vai notar o formato estadunidense de contar história. A diferença é que ambientei em Belo Horizonte em vez de Los Angeles. Na época, eu não percebia isso, pois estava replicando algo com o qual eu estava familiarizado. Era o que eu considerava como normal, padrão. É aí que reside o problema.
Eu sei que dá mais trabalho encontrar livros e histórias fora do eixo EUA/Europa ocidental. Basta abrir a Amazon que você quase se afoga na enxurrada de histórias estadunidenses. Ainda assim, é um esforço que vale a pena.
Tem uma frase do King que, apesar de ser um tapa na cara, eu concordo: se você quer trabalhar com escrita, é bom que leia e escreva muito. Já que precisamos ler, por que nos limitarmos a um país? Me parece um desperdício gigantesco já que temos um mundo para descobrir. Hoje existem plataformas como o Scrib e BibliOn que favorecem ainda mais o contato com outras histórias (sem pirataria).
A leitura é uma forma de viajar sem sair de casa. Por que então a gente escolhe viajar para o mesmo lugar se podemos escolher conhecer outros mundos?
Quero te convidar a desbravar outros países. Assim como diversificamos nossa dieta para obter um corpo mais saudável, podemos fazer o mesmo com nossas leituras. Vamos devorar várias culturas e cuspir de volta algo nosso.
Tupi or not tupi. That’s the question.
(Manifesto Antropófago, Oswald de Andrade, 1928)
Que as águas do nosso poço venham de todos os lugares do mundo.
Apesar de mencionar, não adentrei no que seria “cultura brasileira”. Esse é um papo que quero trazer em uma newsletter separada. Já adianto que não há uma, e sim várias culturas, vários Brasis que se misturam, se abraçam e se complementam.
Se você gostou do papo, que tal mandar pra aquelu amigue que você sabe que também vai gostar?
Algumas dicas de leituras incríveis que fiz nos últimos meses se você não souber por onde começar.
Água Doce (Nigéria) - ficção contemporânea com discussão sobre gênero.
Penitência (Japão) - suspense com vingança.
Como água para chocolate (México) - “cozinha-ficção” onde realidade e culinária se misturam de uma forma deliciosa.
10 minutos e 38 segundos nesse mundo estranho (Turquia) - ficção contemporânea com fiscussão de gêneros e nosso lugar na sociedade.
Mayombe (Angola) - narrativa imersiva que te joga no meio do movimento de libertação de Angola.
A insustantável leveza do ser (República Tcheca) - ficção e filosofia se abraçam enquanto o autor explora o que é pior: a leveza ou o peso?
Essa foi a nossa primeira discussão por aqui. Fique à vontade para deixar o que você acha do assunto aqui ou me manda nas redes sociais!
Eu tava pensando algo similar um dia desses, de como muita coisa vem de fora (e nesse caso, muitas vezes o fora é só EUA/Europa ocidental) e como a gente vê nossa cultura como "pé de chinelo". Como certas culturas são simplesmente tidas como inferiores em termos de comparação. E dá pra ver isso em ficção e não ficção. A cultura europeia é tida como ápice, enquanto a cultura africana, é retratada como bárbara. E assim, no Brasil eu tenho a percepção de que até o tema escravidão africana é relativisada e não tem o peso que deveria ter. Não vemos, por exemplo, como eram ricos os reinos africanos durante a idade média, não vemos quase nada da ásia a não ser Japão, Coreia do sul e China. E nem estou falando dos costumes tradicionais das demais culturas, mas até de hoje em dia. Não sei se fiz sentido, pq tentei resumir algo que dá uma conversa inteira XD
adorei a news, amigo! já tinha te visto comentando um pouco sobre o tema no insta e acho extremamente necessário pensarmos sobre. quero ler e consumir mais coisas que vão além do nicho que estou acostumada e por isso tô amando a ideia do nosso clubinho. cheia de indicações legais pra nos aventurarmos <3